Rachado, o grupo das 20 maiores economias do mundo “deve lavar a roupa suja” no primeiro dia de reunião de ministros das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, a capital do G20 pelos próximos dois dias. Esta será a primeira vez desde o início da guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, desencadeada pelo ataque do movimento islâmico palestino em 7 de outubro, que os chanceleres do grupo se reúnem para uma avaliação da conjuntura internacional.

Vivian Oswald, correspondente da RFI no Rio de Janeiro

O primeiro dia do encontro de chanceleres do G20, nesta quarta-feira (21), irá tratar das grandes questões geopolíticas que tanto dividem as nações. Assim, espera-se que haja espaço no segundo dia para as discussões sobre governança global, uma das prioridades da presidência brasileira durante a gestão dessa instância multilateral, que se encerra em novembro.

Os debates acontecem dias depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desencadear uma crise diplomática com Israel, após comparar a ação do governo israelense na Faixa de Gaza ao Holocausto e a Rússia revelar que o maior opositor ao governo de Vladimir Putin, o advogado e ativista Alexei Navalny, morreu em uma penitenciária de segurança máxima no Ártico, às vésperas da eleição presidencial naquele país, que segue em guerra contra a Ucrânia.

A presidência brasileira do G20 optou por uma pauta de discussões aberta neste primeiro dia para que as divergências entre os países sejam expostas. Assim, a portas fechadas, todos terão a oportunidade de defender suas posições na tumultuada agenda geopolítica. É um momento para “se lavar a roupa suja”, segundo um interlocutor ouvido pela RFI. As diferentes nações devem trocar recados e, possivelmente, muitas farpas.

A expectativa é que, desta maneira, se libere a pauta temática que o Brasil considera prioritária para esta primeira rodada entre os chanceleres que é a de reformas do sistema de governança global e do multilateralismo. Esse é um dos três pilares da presidência brasileira, junto com o combate à fome e às desigualdades e a mudança do clima. O Brasil preparou uma agenda clara, um documento com seis páginas de subsídios para as discussões. A diplomacia brasileira quer resultados nessa seara. É uma das marcas que o governo Lula quer deixar da presidência brasileira à frente do G20.

Como não há previsão de uma declaração conjunta ao final dos dois dias de reuniões, a ideia é que se discuta o que tem que ser debatido e deixe a poeira sobre as questões mais espinhosas baixar até novembro. Um comunicado com as posições de consenso do grupo deverá ser divulgado apenas depois do encontro dos chefes de Estado e de governo no final do ano. A cúpula de líderes também acontecerá no Rio de Janeiro, quando o Brasil passará a presidência do G20 para a África do Sul.

Reforma da governança global

O objetivo do encontro na Marina da Glória é aparar arestas e passar para o tópico seguinte da agenda, que, mais do que nunca, está relacionado à questão geopolítica a ser tratada no primeiro momento. O atual modelo de governança global, segundo o governo brasileiro, não reflete mais a realidade internacional.

Conflitos como o da Rússia e Ucrânia, que entra em seu terceiro ano, e o de Israel e o Hamas em Gaza não encontram solução no Conselho de Segurança na ONU. A Organização Mundial de Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird) são dominados por um conjunto reduzido de países que não representam as economias de maior peso e tampouco atendem as demandas das nações em desenvolvimento. Esses temas serão tratados no segundo dia do encontro. Ou seja, o primeiro dia será o maior exemplo para todos de que as instituições, como estão, já não funcionam para responder às questões globais. É nisso que aposta o governo brasileiro.

A crise diplomática provocada pelo presidente Lula com Israel põe, de certa forma, lenha na fogueira. Lula foi declarado "persona non grata" pelo governo israelense. Mas os problemas não se resumem às críticas do líder brasileiro. O ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, David Cameron, ex-premiê britânico, foi declarado no mesmo dia "persona non grata" pela Argentina, após visita às Ilhas Malvinas. O chanceler russo, Serguei Lavrov, desembarca no Brasil em meio à guerra com a Ucrânia e à morte não elucidada do opositor Alexei Navalny na prisão. 

Neste contexto conturbado, durante o encontro do Rio deve ser confirmada a realização de uma segunda reunião de chanceleres do G20, que acontecerá à margem da Assembleia-Geral da ONU em setembro. Esta é outra novidade da presidência brasileira do grupo. Será a primeira vez que os ministros das Relações Exteriores se reunirão na sede da ONU, o que se espera que seja interpretado como um forte gesto diplomático. "Ao patrocinar esse encontro, o Brasil busca enfatizar a necessidade de aproximar as discussões no âmbito da ONU e do G20, e de avançar de forma decidida rumo a uma reforma ampla das instituições da governança global”, segundo o governo brasileiro.

Mauro Vieira dá resposta dura ao posicionamento de Israel  

Na saída da Marina da Glória, onde acontece a reunião do G20, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, reagiu de maneira dura às manifestações do titular da chancelaria do governo de Benjamin Netanyahu, que chamou de "inaceitáveis" na forma e "mentirosas" no conteúdo. Vieira afirmou que "recorrer sistematicamente à distorção de declarações é vergonhosa página da história da diplomacia de Israel". Mas se disse seguro de que a atitude do governo Netanyahu não reflete o sentimento da sua população. O chefe da diplomacia brasileira acrescentou que “o povo israelense não merece essa desonestidade, que não está à altura da história de luta e de coragem do povo judeu". Vieira admitiu nunca ter visto nada parecido nos seus mais de 50 anos de carreira.

Ele acusou o ministro israelense Israel Katz de distorcer posições do Brasil para tirar proveito em política doméstica. "Além de tentar semear divisões, estaria buscando aumentar sua visibilidade no Brasil para lançar uma cortina de fumaça que encubra o real problema do massacre em curso em Gaza, onde 30 mil civis palestinos já morreram, em sua maioria mulheres e crianças, e da população submetida a deslocamento forçado e a punição coletiva”, disse. Isso tem levado ao crescente isolamento internacional do governo Netanyahu, segundo ele, fato que estaria refletido nas deliberações em andamento na Corte Internacional de Justiça, a mais alta instância jurídica da ONU. "É este isolamento que o titular da chancelaria israelense tenta esconder. Não entraremos nesse jogo. E não deixaremos de lutar pela proteção das vidas inocentes em risco”, ressaltou.