Após dois votos que mostraram divergências quanto à intenção das pessoas que depredaram prédios públicos em 8 de janeiro, o Supremo Tribunal Federal retoma nesta quinta-feira (14) o julgamento histórico. O que está em jogo, dizem analistas, é a resposta que o país consegue dar quando a democracia é colocada em risco.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

O Brasil, que por vezes deve acertar as contas com o passado, tem agora a chance de resolver no presente um importante imbróglio institucional e evitar mais um passivo histórico.

O desafio é encarar a questão delicada e responder o que fazer com pessoas comuns, chefes de família, vizinhos, parentes e aposentados que destruíram prédios públicos porque não aceitaram o resultado das urnas e queriam derrubar um governo democraticamente eleito.

O cientista político Diogo Cunha, professor da Universidade Federal de Pernambuco, afirmou à RFI que, no país, casos como esse muitas vezes ficam sem condenação em nome da reconstrução pacífica, mas que a defesa da democracia pede outra resposta.

“Esses ataques precisam ser punidos e de forma exemplar. Para acabar com a permanente busca de perdão daqueles que atentam contra a democracia, para acabar com a busca eterna das saídas honrosas. Se você analisa as crises do século 20, vê que isso é muito perceptível no Brasil. O caso mais notório talvez seja a anistia geral pós ditadura militar”, exemplificou Cunha.

Intenção golpista

O julgamento que começou nesta quarta-feira tem duas teses até aqui. Uma delas é a do relator, Alexandre de Moraes, para quem os invasadores das sedes dos três poderes não só destruíram tudo pela frente, mas tinham clara intenção golpista. “Não existe aqui liberdade de manifestação para atentar contra a democracia, para pedir ato institucional número 5, para pedir a volta da tortura, para pedir a morte dos inimigos políticos, os comunistas, para pedir intervenção militar. Isso é crime."

Já o ministro Nunes Marques, revisor do processo e um dos indiciados por Jair Bolsonaro ao STF, defende a punição pela baderna e pelo prejuízo, mas acha um exagero punir os acusados por golpe e organização criminosa. "A verdade é que a depredação dos prédios, que são sedes dos poderes da República, em nenhum momento chegou a ameaçar a autoridade dos dignatários de cada um dos poderes."

Para Marques, a pena deve ser de 2 anos e seis meses em regime aberto, o que provavelmente seria convertido em prestação de serviço comunitário. Moraes defende uma pena de 17 anos, começando no regime fechado. O julgamento será retomado nesta quinta-feira, com o voto dos demais ministros.

“Esse julgamento tem uma importância muito grande. Desde 1988 é a primeira vez que a democracia foi seriamente atacada. Não só os atos do dia 8 em si, mas tudo o que aconteceu no governo Bolsonaro. Até então, você tinha um consenso em torno da democracia entre os players políticos. E aí vem um processo complexo que se desenrola a partir de 2013, com manifestações, com a Lava Jato e a terra arrasada da política, o impeachment de Dilma, culminando com o governo Bolsonaro”, contextualizou o analista político Diogo Cunha.

Milhares de denúncias

Ao todo, são mais de 1.300 denúncias vinculadas às invasões do dia 8 de janeiro. O STF colocou em pauta, agora, o primeiro lote de quatro delas.

O caso que abriu o julgamento é o de um morador de Diadema (SP), de 51 anos. Depois dos atos, ele foi demitido por justa causa da empresa de saneamento estadual, onde trabalhava. A defesa disse que Aécio Pereira está há oito meses sem ter contato com a família porque os parentes não tomaram a vacina contra o coronavírus, o que impede o acesso ao presídio em Brasília e também o preenchimento do cadastro para conversas online.

Embora a análise seja caso a caso, a postura que os ministros terão nesse caso é crucial para entender o que virá pela frente, uma vez que o relator se baseia na tese da multidão. É como num linchamento, não importa quem deu o golpe fatal, mas todos são responsabilizados pela fúria coletiva.

Um dos advogados de defesa, Sebastião Reis Coelho, que já havia feito críticas públicas a Alexandre de Moraes, tentou minimizar os atos. “Tentar dar golpe de Estado sem arma? As armas que temos aqui neste processo são canivetes, bolinhas de gude, machado. São as armas para o golpe de Estado. Não tinha nenhum quartel de prontidão. Quem iria assumir o poder?”, argumentou Coelho.

Já o Ministério Público defendeu a condenação do réu. "É importante registrar também que o Brasil há muito deixou de ser uma república das bananas, e hoje goza de prestígio internacional nas grandes democracias. Golpe de Estado é página virada na nossa história", disse o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos.

Militares

O analista Diogo Cunha considera importante que o desfecho sobre quem financiou e estimulou os atos também seja rápido. Mas, sobretudo, defende que militares também sejam responsabilizados por apoiar o bolsonarismo que abertamente flertou com a ruptura institucional.

“Seria importante investigar se há elo entre esses eventos e os militares. Parece-me que há responsabilidade grande de militares que embarcaram nesse governo, nessa retórica antidemocrática. Porque o governo Bolsonaro abrigou muitos militares que se viram atrelados, dragados pelo bolsonarismo que tanto questionou as urnas, o processo eleitoral, as instituições democráticas. Mas na verdade sou bem cético quanto a isso. Um ou outro pode pagar a conta, mas o grosso mesmo não será atingido.”

Na sessão desta quarta-feira, o relator falou da participação de militares, deixando claro que a apuração pode atingir alguns, ao mesmo tempo em que tentou preservar a instituição. “O fato de eventuais militares terem participado de ações golpistas e estarem sendo investigados não macula uma verdade histórica que deve ser aqui proclamada: o Exército Brasileiro não aderiu a esse devaneios golpistas, inclusive de políticos que estão sendo investigados”, afirmou Alexandre de Moraes.