Presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa no fim de semana do encontro do G77+China em Havana, que deve receber mais de 30 chefes de Estado e representantes de mais de 100 países da Ásia, África, Oriente Médio, Caribe e América Latina. Depois, o brasileiro embarca para os Estados Unidos, onde discursará na Assembleia Geral da ONU. Analistas ouvidos pela RFI destacaram a maior relevância da relação Sul global hoje, mas também apontaram desafios da diplomacia brasileira. 

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

O encontro é um respiro para Cuba, que viu sua situação econômica afundar de vez nos últimos anos com o cerco comercial de Donald Trump, as restrições da Covid 19 ao turismo e depois a guerra da Ucrânia, que encareceu vários itens importados por Havana. Além de cooperação com países integrantes do grupo, a ilha espera a ajuda de políticos como Lula para abrir portas e atrair a boa vontade de nações como os Estados Unidos, com o presidente Joe Biden.

Para o Brasil, a reunião extraordinária do grupo criado no âmbito da ONU há quase 60 anos, como forma de unir a força de países em desenvolvimento nos pleitos comerciais, e que tem a China como convidada, é uma nova oportunidade de tentar protagonismo na relação Sul global.

“Não se trata mais de um grande grupo de países pobres cheios de contradições entre si. Agora estamos falando de países periféricos que se fortaleceram, e de um cenário de transição nas relações internacionais, em que novos países ganham destaque, especialmente a China, mas outros também, e querem mudar a ordem internacional”, afirmou à RFI o analista internacional William Gonçalves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. "Se o Grupo dos 77 era uma evolução da conferência Afroasiática de Bandung, o Brics ampliado é o ápice desse processo."

Ele avalia que, no caso do Brasil, um dos maiores desafios é superar a polarização e a falta de consenso interno sobre os rumos do país na negociação com outras nações.

“Estamos divididos na opinião pública, estamos divididos na mídia. O Brasil não tem um consenso como tem a China ou a Índia na área internacional", salienta. "Me preocupa também o fato de a diplomacia apontar para uma política de vanguarda sem o apoio das Forças Armadas, que não entendem nada disso, não percebem isso. As Forças Armadas brasileiras ficaram largadas no estacionamento lá dos anos 1950 e 1960. Então nós estamos buscando uma política externa audaciosa, mas sem retaguarda militar", destaca Gonçalves.

Porto Mariel

A polarização da política interna faz Lula levar na bagagem a Havana um assunto espinhoso e de solução ainda incerta: a dívida que Cuba tem com o BNDES por causa da construção do Porto de Mariel, assunto reverberado a exaustão pelos bolsonaristas. O tema poderá ser tratado em reunião bilateral, mas como a situação financeira da ilha é dramática, uma solução passaria pela administração do porto pelo Brasil – o que, explicou o professor da UERJ, também seria complicado.

“Acho que nesse ponto houve um erro do Brasil. Penso que as relações de amizade dos governantes foram um pouco além e superaram os interesses de Estado. A ajuda deveria ter sido de outra maneira, porque esse porto tem localização estratégica e era claro que os Estados Unidos não aceitariam", explica. "Como Cuba não conseguiu honrar as prestações, virou uma pedra no sapato do presidente brasileiro.”

Discurso na ONU

Depois de Cuba, Lula embarca para os Estados Unidos, onde participa de eventos com Joe Biden e discursa na Assembleia Geral da ONU. Déborah Monte, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), disse que ainda é cedo para avaliar os resultados dessa política externa do petista.

“O Brasil, ao mesmo tempo que se coloca como líder do Sul global e reivindica que novos temas sejam incorporados na agenda internacional, também busca manter as portas abertas para a cooperação, o diálogo e articulação com países do Norte global. Então Lula, como porta-voz e principal articulador político brasileiro, precisa de muita habilidade política", observa a professora.

"Os objetivos de liderança e de reforma são de médio, longo prazo. Temos os primeiros passos dados pela política externa do Lula nessa direção, de uma reforma da ordem internacional, sobretudo do Conselho de Segurança da ONU. Mas é cedo para avaliar”, afirmou Monte.

A professora reforça que embora os frutos da nova política externa ainda não estejam maduros, é evidente que houve uma guinada positiva na comparação com a inanição do governo anterior, de Jair Bolsonaro, nessa área. É esse um dos pontos que Lula deve destacar nas Nações Unidas.

“O Brasil vem de um movimento anterior de maior isolamento e menor protagonismo. Então Lula reafirma as credenciais brasileiras como um país que acredita no multilateralismo e que acredita que os temas mais urgentes, sobretudo a crise climática, a fome, precisam de cooperação e articulação”, ressaltou Déborah Monte.

Parceiros ditadores

Mesmo retornando à ribalta dos debates e das negociações, frases polêmicas de Lula e discussões sobre acordo com países não democráticos têm elevado a pressão do Ocidente sobre o presidente brasileiro. Mas para o professor William Gonçalves, essa não deve ser a única régua das relações internacionais, ainda mais num cenário de novos protagonistas no qual grupos como o Brics têm papel mais relevante.

“Nós não podemos exigir que o Brasil, na sua política externa, seja de uma pureza total, que só se relacione com Estados democráticos. Quais são as grandes potências que fazem isso? A Arábia Saudita foi, desde a Segunda Guerra Mundial, um aliado dos Estados Unidos. Um estado ditatorial", destaca.

"Os norte-americanos nunca se preocuparam com isso. Os cálculos estratégicos deles nunca levaram em consideração essa questão. Veja que Arábia Saudita e o Irã são dois grandes produtores de petróleo que hoje integram o Brics, mas já estiveram sob a órbita dos Estados Unidos”, complementa Gonçalves.