O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encerrou neste domingo (18) uma viagem de seis dias ao continente africano, durante a qual evidenciou a disponibilidade do Brasil de ampliar as parcerias e a cooperação com os países da África em diversas áreas. Mas pouco antes de partir, os comentários de Lula sobre a atuação de Israel em Gaza desencadearam uma crise com o governo israelense.

Lúcia Müzell, enviada especial da RFI Brasil a Adis Abeba

Os comentários ocorreram durante a coletiva de imprensa que o presidente concedeu a jornalistas pouco antes de sair da Etiópia e retornar ao Brasil. Questionado sobre a decisão do governo brasileiro de anunciar a entrega de uma nova ajuda para agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA), suspeita de envolvimento entre funcionários da entidade e o grupo Hamas, Lula voltou a criticar a decisão de países ocidentais de suspenderem os aportes.

“Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar a contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente e qual é o tamanho do coração solidário dessa gente, que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, argumentou. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza, com o povo palestino, não existe em nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler decidiu matar os judeus”, disse.

A declaração enfureceu o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que horas depois declarou pelo X que os comentários eram “vergonhosos e graves”. O premiê também informou que convocaria o embaixador brasileiro em Tel Aviv para “uma conversa severa”, uma decisão que o ministro das Relações Exteriores do pais, Israel Katz, já havia antecipado também pelo X.

No meio diplomático, a medida significa que o embaixador Frederico Meyer deve ser chamado para dar explicações sobre o posicionamento do presidente Lula.

Discurso moderado na plenária da cúpula africana

Um dia antes, na abertura da 37ª Cúpula da União Africana, Lula havia optado por um discurso relativamente moderado sobre o assunto na plenária do evento, em meio a uma série de ataques diretos a Israel por lideranças africanas e outros convidados, como o secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit.

Lula primeiro ressaltou que o Brasil condenava os ataques realizados pelo Hamas em 7 de outubro – o que, naquele contexto, significou uma ruptura na narrativa levada à plenária. Depois “rechaçou a resposta desproporcional de Israel”, mas sem se prolongar no tema, ao contrário dos demais oradores.  

O incidente diplomático com Israel coroa uma viagem que já estava marcada por vários percalços, como cancelamentos de reuniões e eventos. Na etapa do Egito, os planos correram como previsto, mas ao chegar na Etiópia, a delegação brasileira parece ter sido surpreendida pelos diversos revezes na programação.

Oficialmente, os cancelamentos de reuniões bilaterais que o presidente teria, à margem da cúpula africana, aconteceram devido a problemas como o trânsito caótico no primeiro dia do evento, que teria deixado muitos dirigentes trancados no caminho, ou a realização de reuniões imprevistas, que diziam respeito a questões internas da própria África.

Assim, uma reunião extraordinária convocada por Angola para debater o aumento da violência no leste da República Democrática do Congo resultou no esvaziamento generalizado de um evento da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) sobre financiamento climático, no qual Lula deveria discursar. No sábado, essa situação se prolongou, de modo que o presidente decidiu até cancelar a presença no almoço e no jantar oficial da cúpula.  

‘Diplomacia presidencial’ abre caminho para retomada de parcerias

Apesar dos percalços, o presidente demonstrou satisfação com a viagem, que ele classificou como “uma das mais importantes que já fez e ainda fará". Ao voltar ao Planalto para um terceiro mandato, Lula deixou claro que redirecionaria a diplomacia brasileira para o Sul global, do qual ele aspira ser um dos líderes.

A realização de uma segunda viagem à África em apenas seis meses demonstra que o Brasil quer concretizar essa reaproximação, por meio do aumento de cooperação em áreas como agricultura, energia e educação, inclusive com o plano de retomada de investimentos e financiamentos de projetos de desenvolvimento.

“Um oceano não é um obstáculo, ele é uma dádiva de Deus para a nossa aproximação. (...) O Brasil não tem no mundo a força que eu gostaria que tivesse, mas tudo, muito ou pouco, que o Brasil tem eu quero compartilhar com o continente africano, porque nós temos uma dívida histórica de 300 anos de escravidão e a única forma de pagar é com solidariedade e com muito amor”, disse, na plenária da cúpula africana. 

Mas, em termos de anúncios concretos sobre como implementar essa reaproximação, a viagem teve resultados vagos.

“A África passou a ser o sonho de consumo de muitas nações, que viram as oportunidades que um continente do tamanho do africano tem”, salientou João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África, citando o exemplo de países como China, Índia e Turquia.

“Não ter empresários em uma reunião que é eminentemente política não é um grande pecado. O pecado é não aproveitar a oportunidade que nós temos para dizer qual será a próxima iniciativa, o próximo movimento. Isso vai ser um esforço coletivo”, explicou Monte, que acompanhou a cúpula em Adis Abeba. “Eu costumo dizer que a diplomacia presidencial é importante e Lula sabe fazer isso muito bem e os empresários vão a reboque disso.”