Representantes de comunidades de vários estados ergueram acampamento no centro de Brasília para protestar contra ação que pode impor derrota histórica aos povos originários e abrir territórios a várias atividades. Grupos econômicos e fazendeiros também se mobilizaram, reforçando pressão sobre o STF, que volta a analisar o assunto hoje com voto do ministro Alexandre de Moraes

 

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

 “Onde moro eu planto o que a gente come. Planto milho, batata-doce. Tem caça também. Tenho medo de perder isso. Os brancos, deputados, ministros estão mexendo com minha floresta, nossa floresta. Tenho medo de perder onde eu moro”. A apreensão de Iapi Aweti justifica a viagem dela, do Parque Nacional do Xingu, onde vive, ao acampamento na capital federal, bem ao lado da Esplanada dos Ministérios.

O marco temporal das terras indígenas é uma das principais batalhas dos povos originários na história recente, porque pode pôr a perder muitas conquistas advindas com a Constituição de 1988, como a homologação de terras e a proteção das áreas reconhecidas. E, com um Legislativo que já mostrou de que lado está ao desidratar os Ministérios do Meio Ambiente e do Povos Indígenas, o Supremo Tribunal Federal tornou-se esperança de evitar o caos.

Não à toa que a pressão sobre o STF foi intensa nos últimos dias. Indígenas fizeram passeata em frente ao prédio e levaram um abaixo-assinado à presidente da corte, Rose Weber. Parlamentares do agronegócio e advogados ligados a grupos econômicos com interesse em terras demarcadas ou em fase de demarcação também fizeram cerco duro aos ministros, apelando para que haja alguma solução que lhes seja mais favorável. A mobilização tem levado muitos a acreditar que pode sair dali um voto intermediário de algum integrante da corte ou mesmo um impasse com novo adiamento da pauta.

O placar parcial está em 1 a 1, com voto do relator Edson Fachin pela causa indígena, e de Nunes Marques, que acolheu os argumentos dos ruralistas. “A proteção constitucional às terras dos povos originários independe de marco temporal. O que a Constituição estabelece é que pertencem às comunidades indígenas as terras tradicionalmente ocupadas por elas, habitadas em caráter permanente segundo seus usos, costumes e tradições”, afirmou à RFI o jurista Mamede Said, professor de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

O STF vai dizer se podem ser consideradas terras indígenas apenas áreas que estavam ocupadas pelos povos nativos no dia da promulgação da Carta de 1988, ou se valem critérios de ocupação e história levados em conta pela Funai ao iniciar o processo de reconhecimento. “É importante lembrar que, em 5 de outubro de 1988, muitas comunidades indígenas tinham sido expulsas de suas terras, terras que ocupavam bem antes disso, e que depois retornaram a elas exatamente por conta de novas demarcações. Então a aprovação do marco temporal vai abrir espaço para conflitos que vão se multiplicar Brasil afora, para anular várias demarcações já realizadas. É uma medida que não contribui para a ordem pública e a paz social”, alerta Said.

Interesses da bancada ruralista

A Câmara dos Deputados aprovou semana passada um projeto de lei que limita a data para reconhecimento da terra indígena, mesmo sabendo que a palavra do STF neste caso tem prevalência. O texto votado ainda diz que atividades podem ser autorizadas nas áreas indígenas, mesmo sem consulta a seus habitantes. “O projeto de lei aprovado na Câmara representa os interesses da bancada ruralista, mas eu acho que o Supremo Tribunal Federal vai rejeitar a tese do marco temporal conforme o voto do relator, Edson Fachin. E o próprio Senado também não temos certeza de que ia aprovar esse projeto que a Câmara aprovou de forma célere, exatamente para tentar constranger o Supremo Tribunal Federal”, avalia o especialista da UnB.

As áreas ocupadas por indígenas hoje, sejam elas homologadas ou não, somam pouco mais de 13% do território nacional, sendo que a maior parte disso, mais de 90%, está na Amazônia Legal, onde vivem cerca 60% da população indígena no Brasil. Se a tese do marco temporal for recebida pelo Judiciário, todo processo de homologação de terra dos povos originários terá de ser revisto e muitos pedidos em análise deverão ser rejeitados. Existem hoje mais de 480 áreas já reconhecidas oficialmente como território indígena e 280 pedidos em andamento, em diferentes etapas do processo.

“É um direito constitucional nosso o reconhecimento de nossa terra. Não podemos aceitar essa mudança. Por isso indígenas de vários estados do país estão aqui em Brasília, vamos ficar mobilizados”, afirmou Tagaktum Kaiapó, que também veio com os filhos pequenos e a mulher.

“Se o marco temporal prevalecer, garimpeiros, fazendeiros, madeireiros poderão invadir os territórios. E isso fere a Constituição. Porque se a gente fosse defender as leis mesmo, isso aqui era tudo nosso. A luta não é fácil e vem desde o nosso nascimento. A gente já nasce lutando”, afirmou Ywara Guajajara, filha da ministra dos Povos Indígenas, e que participa das mobilizações em Brasília com outros jovens indígenas.

Quem defende alterações nas regras de demarcação alega a necessidade de expansão de atividades econômicas. “Os indígenas são menos de 1 milhão em nosso país e eles ocupam 13,8% do território nacional. Se não houver um marco temporal, uma data certa para valer a ocupação, então vamos entregar logo o Brasil para os povos indígenas, e vamos nos mudar, vamos fazer uma grande diáspora, e ir morar em outro lugar”, protestou o senador Jorde Seid (PL/SC), que foi secretário da pesca do governo Jair Bolsonaro.

Em defesa do agro

“Isso vai inviabilizar o agronegócio brasileiro, agro esse que é responsável praticamente por 30% do nosso Produto Interno Bruto - o agro que alimenta o Brasil, o agro que alimenta o mundo, o agro que mantém de pé a economia da nossa pátria amada Brasil”, afirmou o parlamentar da tribuna.

Já os ambientalistas dizem que no Brasil não é necessário avançar sobre área indígena para ampliar a produção agropecuária, visto que as terras já usadas para isso são mais que suficientes. Além disso, citam que o guardião mais eficaz da floresta é o povo indígena, assegurando equilíbrio no clima em todo o país. “Se permitirem a invasão e o desmatamento dessas áreas haverá uma tragédia social na sobrevivência desses povos, mas também prejuízos a todos nós, com uma mudança no regime de chuvas ao nível continental. As terras indígenas são as áreas mais conservadas do país, são mais preservadas que as unidades de conservação. Mexer nisso afetará a todos, inclusive a produção agrícola”, afirmou à RFI a advogada ambientalista Juliana Batista.

O processo do marco temporal teve origem em várias ações que hoje tramitam juntas, inclusive uma do governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra indígena Ibirama-Kaklãnõ, que hoje também abriga aldeias Kaingang e Guarani.

Quem faz uma breve pesquisa sobre comunidades indígenas do sul do país ou já leu o livro Os Índios Xokleng - Memória Visual, do antropólogo Silvio Coelho dos Santos (1938-2008), fica perturbado tentando compreender como o poder público ainda hoje se volta contra um povo que foi quase dizimado em massacres com os mais sórdidos requintes de crueldade, inclusive contra crianças, lançadas para o alto e mortas dilaceradas em punhais. Naquela época autoridades, governo e proprietários diziam que a presença desses povos nativos atrapalhava a colonização e o crescimento econômico da região.