O governo brasileiro está exigindo de empresas com mais de cem funcionários dados salariais de homens e mulheres. O prazo para envio do primeiro relatório vence amanhã, dia internacional da mulher. Especialistas ouvidas pela RFI destacam a necessidade de alterar a organização do trabalho que inviabiliza a subida da mulher na carreira e de deixar claro que essa luta não é algo individual delas, mas de toda sociedade.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

O esforço é para que a equidade salarial de mulheres e homens, prevista na Constituição e na CLT, saia do discurso e vire política prática. A divulgação periódica de dados salariais pelas empresas com vistas à transparência e a possibilidade de verificação por parte dos interessados é uma das frentes adotadas pelo governo.

“Antes de se estabelecer uma punição ou um incentivo, para que a iniciativa não perca força, é importante fazer uma avaliação. Nós sabemos de modo geral, por pesquisas como a PNAD contínua, que há diferenças, mas a gente não sabe efetivamente qual é o tamanho dessa disparidade, como isso se dá dentro das organizações”, afirmou à RFI Carla Antloga, pesquisadora em Trabalho Feminino e professora da Universidade de Brasília.

Para ela, a atual dinâmica do trabalho é o principal gargalo hoje da ascensão feminina. “Vou dar um pequeno exemplo. Muitas vezes as reuniões nas empresas atravessam o final da tarde. E as mães são as principais responsáveis por buscar as crianças na escola. Às vezes até vale a pena financeiramente um cargo superior, mas ela acaba não aceitando. E para as mulheres é sempre pior. Porque, quando são os homens que cuidam, eles dispõem de uma rede de suporte, da mãe, das irmãs, da esposa, que é diferente da rede de suporte que a mulher dispõe.”

A pesquisadora também critica a atual jornada de trabalho no Brasil, de 44 horas semanais, que implica numa ausência de casa por longo período. “É preciso mudar o desenho do trabalho. Essa jornada de 8 horas diárias em que a gente sai muito cedo de casa, chega muito tarde em casa e, às vezes, ainda continua trabalhando quando chega, é inviável se você tem que cuidar. E cuidar não só dos filhos, mas de uma casa, de uma vida, cuidar de si”, reflete Carla Antloga.

Sem perspectiva

“A gente devia ter mais uma oportunidade de ganhar mais, de subir mais. Essa oportunidade nós não temos. Nunca tivemos. Acho que a maioria das mulheres não tem oportunidade”, lamentou Neusa Viana à RFI.

Copeira de uma empresa que presta serviços terceirizados ao governo federal em Brasília, ela está há doze anos na companhia, é descrita como dedicada e querida pelos servidores, mas sempre ganhou o piso. Isso ilustra outra constatação de fontes ouvidas pela reportagem, de que alguns espaços, onde há forte presença feminina, a elevação salarial é quase impossível.

“Essa divisão sexual do trabalho relegou espaços, profissões e ocupações com menor prestígio social, com menor potencial de ascensão, de status e de prestígio às mulheres. Os espaços de decisão, os espaços de poder, eles são ocupados por homens”, disse à RFI a professora Hayeska Costa Barroso, do Departamento de Serviço Social da Un

A especialista destaca que mudar essa realidade é um desafio coletivo, da sociedade e não pode ser atribuído de forma individual às mulheres, justamente para não replicar a cultura machista na hora de buscar soluções para combatê-la.

“É muito importante que a gente chame a atenção para o fato de que romper com esses entraves, quebrar esse telhado de vidro, pensar em como superar tal cenário, isso não é um processo individual. Porque, do contrário, a gente reproduz a dinâmica dessa estrutura patriarcal, colocando na mulher a responsabilidade de romper ou de superar dimensões da vida que não foram criadas por ela”, ressaltou Barroso.

Misoginia nos tribunais

Outra frente de atuação do poder público para assegurar tratamento digno às mulheres vem de órgãos do judiciário diante da constatação de que agentes do direito ainda replicam comportamentos discriminatórios e misóginos, especialmente no julgamento de casos que envolvem violência sexual contra mulheres.

Levantar questões sobre a roupa que a mulher estava usando, se ela gosta de sair, se ela gosta de beber, são exemplos de como a vítima que buscou a justiça pode virar ré, apesar da lei Mariana Ferrer, que surgiu justamente de um caso de constrangimento da mulher perante um juiz, um advogado e um promotor de justiça.

O Supremo Tribunal Federal marcou para esta quinta-feira o julgamento de um pedido da Procuradoria-Geral da República para que a corte deixe claro que não se pode considerar a vida pregressa da mulher nem no julgamento, nem na hora de fixar a pena, quando tais informações não têm ligação direta com o caso em análise.

“Porque essa é uma abordagem que desvia o foco do crime que foi cometido, um crime vil, numa situação que revitimiza as pessoas e que infelizmente ainda encontra espaço no nosso sistema de justiça, como é possível observar em casos identificados inclusive pelo Ministério das Mulheres”, afirmou à RFI a advogada da União Maria Helena Pedrosa.

“O poder Judiciário não é linear e a cultura machista que existe dentro do nosso país também permeia as diversas instituições, inclusive o Poder Judiciário e os outros atores do sistema de justiça. Mas, embora seja muito triste que a gente ainda precise falar sobre isso em 2024, por outro lado, isso também é uma esperança de mudança”, destacou a advogada pública.