O começo da produção da Sputnik V no Brasil e o futuro processo de vacinação com o imunizante chinês Coronavac em São Paulo são elementos de uma espécie de "nova Guerra Fria" na América Latina. Rússia e China usam suas vacinas para ganhar projeção regional em um terreno abandonado pelos Estados Unidos. A dificuldade de acesso dos países latino-americanos a outros imunizantes e a pressa para iniciar as campanhas antes de uma segunda onda de Covid-19 dão vantagem a Moscou e Pequim nesta disputa geopolítica.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Os primeiros movimentos no tabuleiro latino-americano mostram a Rússia e a China a ganhando posições e expandindo suas zonas de influência nesta "Miniguerra Fria" desencadeada pela corrida internacional pela vacina contra a Covid-19.

"Para a Rússia e para a China, tudo é geopolítica. E a Ciência é usada como parte dessa estratégia. Esses países têm ainda uma persistente visão de Guerra Fria. A disputa, no entanto, não é a mesma que marcou a de décadas atrás. Longe ficou a disputa ideológica contra ou a favor do comunismo. A 'nova Guerra Fria' é comercial e por poder", explica à RFI o médico e analista político argentino, Nelson Castro.

Esses movimentos da Rússia e da China na região tiveram, nos últimos dias, um capítulo brasileiro: a Sputnik V será produzida no Brasil a partir da próxima sexta-feira (15). Seriam oito milhões de doses mensais, destinadas num primeiro momento à Argentina, à Bolívia e, provavelmente, ao México.

Mesmo sem publicações científicas russas suficientes sobre os ensaios clínicos, a Bolívia já aprovou a Sputnik. Tem um contrato para receber 5,2 milhões de doses em março. O México está interessado na vacina russa. E a Argentina já começou, mesmo timidamente, a vacinar com a Sputnik enquanto espera receber 20 milhões de doses até março. 

Por outro lado, a Argentina também negocia com a chinesa Sinopharm outras 15 milhões de doses e mantém diálogo com o Instituto Butantan para conseguir alguns lotes da produção de outra chinesa, a Coronavac, que São Paulo promete utilizar.

Ausência dos Estados Unidos

Rússia e China avançam em detrimento das vacinas nas quais os Estados Unidos têm participação (Moderna, Pfizer, Johnson & Johnson e Novavax). Na "nova Guerra Fria", o vácuo norte-americano é ocupado por outros laboratórios chineses (Sinovac, CanSino e Sinopharm) e russos (Gamaleya e Vector).

"A Rússia e a China estão aproveitando, enquanto os Estados Unidos estão perdendo a oportunidade de somar influência diplomática, a chamada 'soft power'. O governo Donald Trump ficou mais preocupado em salvar-se a si mesmo do que em colaborar com os vizinhos latino-americanos. É uma estratégia da Rússia e da China, países estão jogando muito bem e sozinhos na região", indica à RFI o sociólogo e analista político chileno Patricio Navia, professor da Universidade de Diego Portales, no Chile, e da New York University, nos Estados Unidos.

Brasil, Argentina e México apostaram na produção da vacina da Oxford com o laboratório AstraZeneca, mas a vacina teve um tropeço durante os testes, perdendo postos na corrida.

Por outro lado, as vacinas produzidas por laboratórios americanos foram motivo de disputa entre os países ricos (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Japão, Israel e União Europeia), cabendo aos pobres um alinhamento com a Rússia e com a China, avalia o cientista político equatoriano Simón Pachano, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso).

"Os países ricos abocanham a produção. Os países pobres precisam de um acesso que lhes é difícil. É quando surgem no cenário as alternativas russa e chinesa. Mesmo os países latino-americanos que tiveram acesso à vacina da Pfizer, receberam quantidades mínimas sem garantia de que poderão receber o que diz no contrato", ressalta Pachano.

Alguns países da região já tinham uma política exterior próxima da China e da Rússia. Nesse alinhamento político, aparecem os países da esquerda latino-americana: Venezuela, Nicarágua, Bolívia, México e Argentina. São aqueles que já fecharam ou que estão por fechar acordos com os russos e com os chineses.

"Existe o componente ideológico, existe a dificuldade econômica de acesso às vacinas e existe deficiência em política de Saúde pública. São os três componentes que deixam o terreno propício para acordos com a Rússia e a China", observa Nelson Castro. "Em outras palavras, há ideologia, pobreza e improviso", sintetiza.

Argentina como ponta de lança

A Argentina começou a vacinar em 29 de dezembro, tornando-se o primeiro latino-americano a usar o imunizante russo. Recebeu 300 mil doses na véspera do Natal. Ao que parece, esse foi um favor pessoal do presidente Vladimir Putin, que teria concordado em enviar a Buenos Aires doses que deveriam ser usadas na Rússia.

"Um amigo na necessidade é um amigo de verdade", disse o embaixador russo na Argentina, Dmitry Feokstistov, quando as doses da Sputnik chegaram na capital argentina.

O presidente Alberto Fernández tem conversado com os países com os quais a Argentina tem afinidade para abrir canais de negociação com os russos. Foi assim que a Bolívia fechou um contrato no dia 30 de dezembro e que o México entrou em negociações.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, anunciou que vai receber 10 milhões de doses da Sputnik e que aguarda por acordos com a China e com Cuba.

Sem margem política

Enquanto a Rússia e a China investem em seu jogo geopolítico para posicionamento na América Latina, os governos da região também movem seus peões. As vacinas têm sido usadas como elementos de propaganda política. Os países latino-americanos apostam tudo nesses imunizantes, venham de onde vierem, como verdadeiras epopeias da salvação.

Os governos, acuados e em queda de popularidade, precisam gerar esperança numa população com esgotamento social e psicológico. Os líderes sabem que não há margem para fecharem a economia com novos lockdowns diante da segunda onda que ameaça chegar rapidamente.

"A vacina russa tem sido usada tanto por Vladimir Putin quanto por Alberto Fernández como elemento de propaganda. O desespero da Rússia em ser a pioneira na vacina significou uma falta nos procedimentos e nos tempos para se fazer uma vacina com toda a informação científica necessária. Quando a política interfere na ciência, estamos diante de um problema", adverte Nelson Castro, que deve lançar o seu sétimo livro, "A Saúde dos Papas", sobre política e saúde.