Num cenário político inspirado no estilo dos presidentes norte-americanos, Javier Milei vai discursar no Parlamento, que classificou dias atrás como “um ninho de ratos”, para pedir que os legisladores façam parte da mudança e não da “casta” política. O presidente argentino vai revelar o estado da administração herdada do ex-presidente Alberto Fernández, indiciado pela Justiça. Os opositores preparam-se para reagir e nas ruas são esperados panelaços.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Na noite desta sexta-feira (1), o presidente Javier Milei vai abrir as sessões legislativas de 2024 do Congresso argentino. Em seu discurso, ele deverá antecipar os principais eixos do seu plano de governo e indicar o que pretende para o primeiro ano do seu mandato.

“Mas Milei é uma caixa de surpresas. Costuma romper com o previsto no manual. A perspectiva é que a sua mensagem marque um caminho. A grande expectativa é com esse roteiro”, aponta o cientista político Cristian Buttié, diretor da consultora CB Opinião Pública.

O presidente argentino mantém o costume de copiar a estética das Presidências dos Estados Unidos. Desta vez, inspira-se no modelo norte-americano do discurso anual do Estado da União que os presidentes dão no Congresso.

Na Argentina, a abertura das sessões tradicionalmente acontece ao meio-dia, mas desta vez será às 21 horas. O argumento oficial é o de ocupar o horário nobre das transmissões de TV para que mais argentinos possam assistir ao discurso do presidente.

Outra mudança é que Milei não vai ficar sentado na bancada ao lado do presidente da Câmara de Deputados. Vai ficar em pé atrás de um atril, enquanto os legisladores vão permanecer sentados.

Parece uma mudança de menor importância, mas na simbologia de Milei, o presidente aparece numa posição de superioridade diante dos parlamentares.

Para o presidente argentino, romper protocolos e mostrar que as coisas agora são feitas de outra maneira reforça a ideia de que ele não pertence à chamada “velha política”.

O presidente deve falar durante 40 minutos. É um longo discurso, mas, em duração, é a metade se comparado às falas dos ex-presidentes Cristina Kirchner (2007-2015) e Alberto Fernández (2019-2023).

Culpa da oposição

Ao longo da semana, assessores do presidente e até mesmo o próprio Javier Milei deram pistas do que deve ser a estratégia. Milei vai defender o forte ajuste fiscal como a única saída para baixar a inflação. Aliás, deve anunciar que o país já não corre mais perigo de uma hiperinflação, graças à eliminação do déficit fiscal logo no primeiro mês de governo.

Esse ajuste, no entanto, tem gerado consequências drásticas, sobretudo na classe média-baixa. Por isso, Milei deve reforçar a ideia de que, desta vez, o esforço vai valer a pena. O presidente deve pedir um pouco mais de esforço e de paciência à sociedade, sob a promessa de uma luz no final do túnel nos próximos meses.

O problema é atravessar os próximos meses com uma inflação acumulada em mais de 70% só entre dezembro e fevereiro, enquanto os salários, especialmente, os públicos, estão praticamente estagnados.

Para isso, Javier Milei tem uma estratégia: convocar os legisladores a aprovarem as leis reformistas. Até agora, nenhuma lei foi aprovada.

O presidente deve dizer que não precisa do Congresso para ajustar a economia, mas que se os legisladores aprovarem as leis reformistas, a população vai sofrer menos o ajuste. Sem as leis, o recorte de verbas, e portanto a dor, será maior.

Dessa forma, Milei joga a culpa do tamanho do ajuste sofrido pela população na casta política que não quer perder os seus privilégios.

“Aqui há duas partes: aqueles que querem uma Argentina diferente e aqueles que não querem. Não interessa o partido político. O que importa é quem quer avançar e quem não. Seguramente, será um discurso que relate a realidade, incluindo o resultado das auditorias deste governo sobre o anterior”, antecipou o porta-voz da Presidência, Manuel Adorni.

Ganhar tempo

Javier Milei está há 80 dias no cargo. Por enquanto, a estratégia de culpar a herança recebida tem dado certo. A maior parte da sociedade entende que o país precisa mudar.

Milei foi eleito com quase 56% dos votos para mudar o rumo da economia. Ainda mantém cerca de 50% de apoio popular, apesar da perda de poder aquisitivo. Porém, os analistas indicam que, a partir de junho, essa paciência pode cair. Os dois próximos meses tendem a ser os mais difíceis. Até maio, o governo precisa mostrar que a inflação entrou em uma rápida queda.

“O presidente mantém liquidez política, com 50% de imagem positiva, mas não possui solvência porque não tem estrutura política. Se Milei disser que não precisa do Congresso para governar, será uma mensagem clara de que vai fundo na sua agenda, independentemente dos obstáculos”, observa Cristian Buttié.

“A partir de junho, a sociedade vai começar a auditar a gestão Milei, tornando mais difícil ao novo governo apelar ao argumento da herança”, prevê.

Enquanto isso, o governo deve dar sinais concretos de que as coisas estão mudando. No discurso desta sexta-feira, Milei deve divulgar uma série de irregularidades que encontrou no Estado, herança do governo anterior.

Nesse sentido, deve apontar ao suposto esquema de corrupção coordenado pelo seu antecessor, o ex-presidente Alberto Fernández. Nas últimas horas, a Justiça indiciou Alberto Fernández por violação dos deveres de um funcionário público, por abuso de autoridade e por uso indevido do dinheiro público. O ex-presidente teria obrigado todos os ministérios a contratarem desnecessários, mas milionários seguros através de um amigo.

Aposta na polarização

Javier Milei precisa encontrar culpados por não poder aplicar a sua revolução liberal nos tempos e nas formas pretendidas, ocultando a sua fraqueza política de origem. O presidente tem uma hiper minoria no Congresso. Apenas 15% dos deputados e 10% dos senadores.

Apesar dessa fragilidade, o presidente tem redobrado a aposta na polarização contra o que ele denomina como “casta política que não quer perder os seus privilégios”.

Em vez de recuar e ceder ao jogo político dos acordos como um político tradicional, Milei deve traçar uma linha: quem está a favor e quem está contra a mudança. E contra a mudança estão todos aqueles que não pensam como ele.

Segundo o deputado Martín Tetaz, a tática é de Murray Newton Rothbard, economista, filósofo e historiador admirado por Milei.

“Num artigo de 1992, Murray Newton Rothbard diz que um governo libertário deve, para além de discutir reformas, aplicar um populismo de direita. Ou seja: construir um relato do tipo ‘nós ou eles’. Milei vai reforçar esse discurso no qual ‘nós’ são os que governam e ‘eles’ são os que pensam diferente e, portanto, são inimigos”, explica o deputado.

Em 80 dias de governo, Milei só somou novos inimigos e adversários. Chamou o Congresso de “ninho de ratos”; acusou os deputados de extorsão em troca de votos e até alguns aliados foram classificados como “traidores”.

“Claramente, Milei não construiu nenhuma ponte. Pelo contrário, destruiu todas as que tentavam construir”, afirma Cristian Buttié.

Reação opositora

Como os opositores podem reagir se forem agora atacados? Tudo vai depender do teor do discurso, mas os opositores devem levar cartazes para exibir como resposta, podem ficar de costas para o presidente em sinal de desprezo e até podem abandonar a sessão.

O que está previsto, mas não se sabe com qual intensidade, é um panelaço contra o presidente Javier Milei do lado de fora do Congresso.