De norte a sul do Chile, celebrações e eventos acontecem nesta segunda-feira, 11 de setembro, e relembram os 50 anos do golpe militar que levou Augusto Pinochet a ocupar o cargo mais alto do país por 17 anos. Uma pesquisa revelou que 32,8% dos entrevistados aprovam o golpe de Estado de 1973.

Camilla Viegas, correspondente da RFI no Chile

Nesta segunda-feira, 11 de setembro, o Chile relembra os 50 anos do golpe militar que deu início à ditadura do general Augusto Pinochet, que interrompeu a democracia e deu lugar a uma ditadura (1973-1990) que deixou 40.179 vítimas entre assassinados, desaparecidos, presos políticos e torturados, conforme ficou estabelecido por duas Comissões da Verdade.

A data é marcada por diversos eventos com o objetivo de celebrar a democracia e relembrar as vítimas da ditadura. O maior deles é realizado pelo governo do presidente Gabriel Boric, que terá como ponto alto um ato oficial no Palácio La Moneda, sede do poder executivo, além de manifestações públicas organizadas por grupos de vítimas da ditadura.

O presidente Boric oferece um café da manhã aos convidados, dentre eles autoridades de outros países, como os presidentes Andrés Manuel Lopez Obrador, do México, Gustavo Petro, da Colômbia, Alberto Fernández, da Argentina, e Luis Lacalle Pou, do Uruguai. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não estará presente, porque cumpriu agenda do G20 na Índia, mas escalou os ministros Flávio Dino (da Justiça), Sílvio Almeida (dos Direitos Humanos) e o secretário executivo Márcio Tavares (da Cultura) para estarem no Chile.

Depois, haverá um evento na Praça da Constituição, que fica em frente ao Palácio La Moneda, onde haverá diversas apresentações culturais, incluindo a presença do pianista Valentín Trujillo, renomado musicista nacional.

O Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um espaço que desde 2010 se tornou um ponto de referência para entender o golpe de 1973, tem uma extensa programação durante o dia, incluindo a projeção dos rostos das vítimas desaparecidas e executadas durante a ditadura na fachada do museu. Locais em Santiago que foram centros de detenção e tortura também terão um dia de cheio de atividades incluindo visitas guiadas, vigílias e palestras.

Em Valparaíso, cidade que fica a 120km de Santiago, haverá um tributo no estádio Elías Figueroa. Em Concepción, a cerca de 500 quilômetros ao sul da capital, a Universidade local fará uma homenagem às vítimas de violações aos direitos humanos na região.

Tumulto durante manifestação

No domingo, o presidente Boric participou da passeata que homenageou as vítimas da ditadura. Anualmente organizada pela Agrupação de Familiares de Detidos Desaparecidos (AFDD), o trajeto deste ano incluía a passagem pela rua Morandé, ao lado do Palácio La Moneda. A manifestação, carregada de emoção e mensagens a favor da democracia, terminou com distúrbios no Cemitério Geral e nos arredores do palácio presidencial.

Segundo a polícia, um grupo de cerca de 50 encapuzados iniciou uma depredação ao La Moneda, jogando pedras, quebrando vidraças e até lançando coquetel molotov. Em resposta, a polícia usou jatos d'água e gás lacrimogêneo para dispersar o grupo. Algumas pessoas foram detidas e três policiais ficaram feridos.

O dia terminou com uma manifestação pacífica em frente ao palácio La Moneda onde centenas de mulheres vestidas de preto gritavam a frase “nunca mais a democracia bombardeada”.

Pacto pela democracia

O presidente Gabriel Boric e seus quatro antecessores assinaram na quinta-feira passada (7) um documento no qual se comprometeram a defender a democracia e os direitos humanos. Os ex-presidentes signatários foram Eduardo Frei (1994-2000), Ricardo Lagos (2000-2006), Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018) e Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022).

A assinatura do documento aconteceu em meio a um clima de confronto político entre o governo e a oposição devido às diferentes visões sobre os responsáveis pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Boric recentemente descreveu o ambiente como tenso: "Sinto que se eu tocar alguém, vou levar um choque elétrico a qualquer momento. O clima está elétrico, está carregado. Estamos a poucos dias de comemorar os 50 anos do rompimento da democracia, e alguns nos convidam a virar a página, a esquecer o passado e a projetá-lo apenas para um futuro esplendor. Mas não há futuro esplendor possível sem verdade".

No documento, intitulado "Pela Democracia, sempre", os ex-presidentes e o atual se comprometem a proteger e defender a democracia, condenar a violência, promover o diálogo, defender e promover os direitos humanos e fortalecer o multilateralismo entre os Estados. Boric valorizou o fato de os ex-presidentes terem se disponibilizado para assumir um compromisso em prol da democracia e do "respeito irrestrito aos direitos humanos".

A ideia inicial do governo era que o documento fosse assinado de forma transversal por todos os partidos políticos no ato público desta segunda-feira (11) no Palácio La Moneda, mas a oposição de direita se retirou do evento e também não assinará o acordo.

Javier Macaya, presidente do conservador partido União Democrática Independente, justificou a ausência na cerimônia de hoje argumentando que pessoas que foram vítimas de "situações muito dolorosas no passado" estarão presentes, e o evento pode incluir apologias a figuras "que não nos parecem adequadas", como o ex-presidente socialista Salvador Allende.

Além de se afastar do evento, a oposição optou por assinar um documento próprio com sete pontos, no qual renovaram seu compromisso com a democracia, os direitos humanos, a paz e a dignidade humana.

Democracia, mas com ressalvas

Questionados em uma pesquisa de opinião sobre o sistema de governo que preferem para o Chile, a maioria dos entrevistados (76,5%) respondeu que prefere governos democráticos, eleitos por votação popular. Por outro lado, 43,7% acreditam que um golpe de Estado contra um governo democrático pode ser justificado dependendo das circunstâncias do país.

“[...] A eleição do plebiscito de 1988 marcou a divisão mais importante sobre a qual a política chilena se constrói, que é essencialmente a divisão em relação à ditadura. Essa divisão, que tem uma base política mais do que divisões de classe social, territoriais ou religiosas, permite explicar tanto os resultados das eleições quanto a formação de coalizões políticas no Chile contemporâneo", diz Nicolas Fleet, Doutor em Sociologia, acadêmico do Departamento de Sociologia da Universidade Alberto Hurtado e Diretor do Mestrado em Sociologia desta universidade.   

"O que talvez seja excepcional é que essa divisão tenha se mantido como a mais relevante da política nacional por tanto tempo e que, portanto, o ciclo de mobilizações sociais que tivemos no Chile durante a última década não parece tê-la modificado - e até pode tê-la reforçado”, explica

O sociólogo acredita que os dados refletem o momento atual da política chilena. “Na minha opinião, esses dados refletem um momento de polarização da direita, explicado não apenas pela oposição ao governo atual, mas também pelo ciclo de mobilizações sociais e, especialmente, pelos protestos de 2019 e pelo processo de mudança constitucional - que tentou, embora sem sucesso, superar o modelo neoliberal deixado pelo regime militar”, conclui.

María Cosette Godoy, Doutora em Ciências Políticas e diretora da Escola de Ciências Políticas da Universidad Diego Portales, também ressalta que “um dos fatores que contribui para entender essa maior polarização é a mudança do sistema eleitoral binominal para um proporcional. O maior grau de fragmentação no Congresso não tem contribuído para a construção dos consensos políticos necessários para superar os últimos eventos de crise e tampouco permite garantir a governabilidade necessária para que o Executivo consiga implementar seu programa de governo”.

Memória e extremismo

A mesma pesquisa, liderada pela consultoria Activa, também revelou que, com relação à figura do ditador Augusto Pinochet, 51% dos entrevistados têm uma imagem negativa dele, enquanto que 26% têm uma imagem positiva. Sobre o presidente socialista deposto em 1973, Salvador Allende, 39% têm uma imagem negativa e 33% uma imagem positiva.

Cerca de 32% dos entrevistados aprovam o Golpe de Estado de 1973, enquanto 42% o desaprovam. Além disso, 30% acreditam que o Golpe foi bom ou muito bom para o país. Em entrevista à RFI sobre esses últimos dados, o Dr em Sociologia Alexis Cortés disse que existe atualmente um movimento de crescimento da direita, em especial extrema direita.

“Há uma onda global que permitiu a vários líderes conservadores consolidar governos iliberais e autoritários, como Trump, Bolsonaro ou Bukele. [...] A direita tradicional tem oscilado entre buscar diferenciação e se posicionar como mais à direita, o que tem exacerbado uma narrativa relativista em relação às violações dos direitos humanos e uma reivindicação da herança ditatorial", ressalta.

"Assim, na direita, houve um coro de vozes que se recusou a fazer gestos de conciliação em relação aos direitos humanos e à condenação de Pinochet, tanto para evitar se associar ao governo de Boric quanto para continuar competindo por um eleitorado que demonstrou um claro movimento em direção à direita”, explica Alexis Cortés, professor do Departamento de Sociologia da Universidad Alberto Hurtado, membro da Comissão de Especialistas do processo constitucional 2023.

Para o sociólogo Nicolas Fleet, está se tornando cada vez mais evidente uma tendência crescente de negação e apoio ao regime de Pinochet no Chile. “A direita sempre teve uma força eleitoral considerável desde o retorno da democracia, embora durante muito tempo, enquanto o voto era voluntário, o referendo do "sim" e do "não" a Pinochet funcionasse como uma divisão que concedeu sucessivas vitórias à centro-esquerda [...]. No entanto, hoje, 50 anos após o Golpe de Estado e após um levante social, observa-se uma crescente onda de negacionismo e reivindicação do pinochetismo. Isso permitiu a José Antonio Kast aumentar seu apoio com um discurso que oferece ordem diante do aumento da criminalidade e da crise migratória”, conclui o acadêmico.

O desafio do governo de Boric

Com desafios importantes nas áreas de segurança, imigração, previdência social e sem a maioria em nenhuma das duas casas do Congresso Nacional, o governo de Boric se esforça para manter sua agenda de promessas feitas durante a campanha que o elegeu. Além disso, o executivo tenta levar adiante uma segunda versão do processo constituinte iniciado em 2020, após um plebiscito no qual 78% dos eleitores votaram pela possibilidade de reescrever a carta magna do país, herdada da ditadura de Pinochet.

Porém, as duas derrotas significativas sofridas pela esquerda nesse processo constituinte (a rejeição em 2021 e a votação de constituintes em 2022), adicionadas ao recente escândalo de corrupção do governo de Boric, conhecido como Caso Fundações, podem ser consideradas uma pedra no sapato do oficialismo.

Para a acadêmica María Cosette Godoy, essas derrotas se explicam porque constituíram uma espécie de avaliação do governo de Boric. “É importante lembrar que a chegada dessa nova geração de políticos gerou grandes expectativas em alguns setores da sociedade por representar uma mudança nas práticas políticas existentes, que foram questionadas devido aos protestos de 2019. [...] Além disso, dado que o Executivo não possui as maiorias necessárias em ambas as Câmaras do Congresso, é pouco provável que consiga cumprir sua agenda de governo e os projetos emblemáticos de reforma das pensões e da saúde que foram prometidos durante a campanha eleitoral”, explica.