O Instituto argentino de Estatísticas e Censos (Indec) divulga nesta sexta-feira (12) a taxa de inflação de março. Nos primeiros quatro meses de governo do presidente Javier Milei, a inflação acumula cerca de 90%, enquanto os salários estão longe de acompanhar o aumento de preços. Apesar do impacto no bolso e no estilo de vida, as pesquisas de opinião indicam que, paradoxalmente, uma maioria ainda apoia as medidas do governo à espera dos benefícios de um ajuste fiscal sem precedentes.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A pesquisa mensal do Banco Central da Argentina, entre os principais agentes econômicos do país, indica uma expectativa média de 12,5% de inflação em março.

O ministro da Economia, Luis Caputo, disse porém que “a inflação do mês passado ficou mais perto da casa dos 10%”.

As duas previsões apontam um acúmulo aproximado de 90% de inflação nos últimos quatro meses, desde que o presidente Javier Milei assumiu o cargo em dezembro. Esta é a inflação mais alta do mundo neste momento.

Após a posse de Milei, o novo governo liberou os preços, congelados ou administrados, apesar da inflação acumulada de 1020% nos quatro anos do governo de Alberto Fernández (2019-2023).

Na pesquisa divulgada pelo Banco Central, os economistas disseram esperar uma inflação de 189,4% em 2024, um número significativamente menor do que os 210,2% projetados em fevereiro.

A expectativa que se manteve inalterada é a de uma economia encolhida em 3,5% do Produto Interno Bruto, que deu sinais de uma leve recuperação no segundo semestre.

Novo impulso à inflação em abril

Para que a inflação de março fosse menor do que a de fevereiro e se mantivesse em queda desde dezembro, o governo adiou aumentos no gás e transporte para abril.

A tarifa de gás aumentará 300% para os particulares e até 460% para o comércio. A de água subirá 209% e os transportes públicos já aumentaram mais de 200%. Os combustíveis, mais de 170% e a energia elétrica 300%.

Alguns aumentos acontecem a partir de um preço muito baixo, mas outros partem de uma base alta. Os planos de saúde são um bom exemplo e aumentaram 165%.

Os salários não têm acompanhado esse ritmo. Por isso, o país vive uma onda de greves setoriais. Na quinta-feira (11), por exemplo, houve uma paralisação dos motoristas de ônibus.

Paralelamente, a maior central sindical do país, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), anunciou uma greve geral em 9 de maio. Esta será a segunda paralisação contra o governo Milei em apenas cinco meses de mandato.

Impacto no dia a dia

O governo Milei tem tido um bom desempenho na macroeconomia, mas tem sérios problemas na microeconomia.

Os títulos públicos argentinos se revalorizam, a taxa de risco-país cai, a bolsa se recupera, a moeda fica estável, mas no cotidiano as dificuldades se acumulam: supermercado, salários, colégio, plano de saúde, contas diárias, necessidades básicas.

Até agora, os argentinos só conheceram os custos de um plano de estabilização incompleto. Os benefícios são uma promessa no final do túnel.

Em dezembro, os salários aumentaram 9,1% em média, enquanto a inflação foi de 25,5%. Em janeiro, os salários aumentaram 16,4%, enquanto a inflação foi de 20,6%.

Em 2023, os trabalhadores públicos tiveram uma queda de 20,2% do poder aquisitivo; os privados, 14,7%; os informais, 31%; e os aposentados, 40%.

Com isso, as vendas no varejo diminuíram 22,1% no primeiro trimestre. As vendas de automóveis desabaram 30,2% no primeiro trimestre. Os fabricantes de carros e de eletrodomésticos passaram a suspender pessoal e a promover um plano de demissão voluntária.

O governo tem aplicado um ajuste para reverter um déficit fiscal de 6,1% do PIB e o FMI (Fundo Monetário Internacional) tem chamado a atenção para a necessidade de atender os mais vulneráveis.

Nesta semana, o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina divulgou um estudo indicando que 32,5% dos trabalhadores, mesmo oficialmente empregados, são pobres.

Esse estudo leva em conta os dados até dezembro do ano passado. A recessão está em 4,6% do PIB. 

Com a economia encolhida e arrecadando menos, o governo precisa ajustar mais porque, para o presidente Milei, o déficit zero é “inegociável”. A expectativa é com as exportações agrícolas a partir de maio.

“Downgrade”

A consultora Kantar analisou os hábitos de consumo dos argentinos em tempos de crise.

Segundo o estudo, 51% dos consumidores trocaram os produtos que habitualmente consumiam por outras marcas mais econômicas, 55% disseram que passaram a comprar apenas o que precisam e 82% contaram que só compram as suas marcas preferidas quando estão em promoção. Mas, ao mesmo tempo, 85% observaram que há menos promoções do que antes.

Guillermo Oliveto, o maior especialista da Argentina em consumo e humor social, tem estudado as profundas mudanças de hábitos dos consumidores desde a chegada de Javier Milei à Presidência.

“Da metade da pirâmide social para cima, as pessoas procuram preservar os planos de saúde e os colégios privados. Essas classes sociais não querem ir para o sistema público. Mas consultas no psicólogo, academia de ginástica e roupas de marcas se tornaram supérfluos", explica Oliveto.

"Na metade da pirâmide social para baixo, o processo é de sobrevivência, primeiro diminuindo a categoria de planos de saúde e de colégios privados, antes de ir ao sistema público. De forma geral, vemos esse ‘downgrade’ muito forte em todas as classes”, completou.

O maior impacto é na classe média, principalmente nos colégios privados e nos planos de saúde. Nesta semana, o ministro da Economia, Luis Caputo, disse que as empresas de medicina privada “passaram do ponto” e que “declararam a guerra à classe média”.

Caputo é o mesmo ministro que, há quatro meses, liberou os preços, permitindo que as empresas de medicina privada aumentassem 165% a mensalidade dos seguros de saúde.

Em fevereiro, as pesquisas revelavam que 70% dos clientes pensavam em mudar de plano e 30% cancelaram os seus planos de saúde.

O mesmo vale para os colégios. Na classe média, os pais procuram transferir os filhos para outros colégios mais baratos, mas dentro do sistema privado.

Da classe média para baixo, as pessoas têm abandonado o sistema privado e passado ao público tanto em Saúde quanto em Educação.

Na hora de consumir, muitos passaram a comer menos e a só comprar o estritamente necessário. Os consumidores abandonaram as marcas conhecidas e trocam o varejo pelo atacado. Vão para as segundas e até às terceiras marcas tanto em roupas quanto em alimentos.

A classe média sai dos shoppings e vai para as lojas genéricas. Nos edifícios, muitos deixam de pagar o condomínio. Nos colégios, os alunos compartilham o material escolar.

“Vemos uma violenta conscientização que corta do orçamento tudo aquilo que é dispensável em todas as classes. Os gastos mais elevados foram adiados”, observa Oliveto.

Recessão com esperança

O especialista Guillermo Oliveto define o atual ambiente social do país como “recessão com esperança”.

“Se eu tiver de definir o clima majoritário desta época é ‘recessão com esperança’. É um enorme paradoxo que retrata bem as contradições de uma sociedade que votou consciente de que era necessário um forte ajuste e que sonha com o futuro", diz. "De outra maneira, não se entende este fenômeno que, apesar de tamanha recessão, Milei conserve bons índices de aprovação. O que está acontecendo na Argentina é absolutamente inédito”, avalia.

A questão é até onde resiste a tolerância social e se por tempo suficiente até a economia reagir.

“A sociedade decidiu apertar o botão para reiniciar todo o sistema, votando num antissistema, sabendo do que se tratava. Milei disse o que faria e está fazendo o que disse. Essa é a sua legitimidade de origem e que lhe permite ter mais prazo político. Mas nada é eterno nem Milei tem um cheque em branco. Uma coisa é saber que o ajuste era inevitável; outra é atravessar o ajuste”, diferencia Guillermo Oliveto.

“As pesquisas dizem que as pessoas teriam uma tolerância de até um ano, mas esses estudos também revelam que uma boa parte não aguentaria mais do que seis meses. Se os próximos meses forem como os anteriores, haverá problema de emprego e isso afeta o humor social porque uma coisa é lutar contra a perda de poder aquisitivo com trabalho; outra é lutar sem trabalho”, adverte.

Apoio popular resiste

A grande maioria das consultoras indica que Javier Milei conserva mais imagem positiva do que negativa, apesar do forte ajuste.

O analista político e consultor em opinião pública, Jorge Giacobbe, divulgou nesta semana que Javier Milei tem 54,1% de imagem positiva. É um número semelhante aos 55,7% que o elegeram.

“Quando se observa quem tem mais imagem positiva do que negativa na política argentina, são todos membros do governo. As referências da oposição têm mais imagem negativa do que positiva. Essa falta de alternativa também ajuda a entender que, para os argentinos, ninguém mais do que Milei representa, neste momento, outra saída”, aponta Giacobbe à RFI.