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Apesar de terem vazado os resultados da premiação do Oscar de 1940, não foi pouca a emoção que tomou conta do salão do Coconut Grove do Hotel The Ambassador, em […]


Apesar de terem vazado os resultados da premiação do Oscar de 1940, não foi pouca a emoção que tomou conta do salão do Coconut Grove do Hotel The Ambassador, em Los Angeles, quando Hattie McDaniel foi anunciada como o vencedora do prêmio de melhor atriz coadjuvante por sua apaixonante interpretação da escrava Mammy, em “… E o vento levou“. Uma longa pausa seguiu-se ao anuncio até que Hattie pudesse cruzar todo o salão e chegar ao palco, onde uma entusiasmada Fay Bainter, vencedora do prêmio no ano anterior, presenteou-a com a plaqueta de ouro comemorativa.


Com a voz embargada, Hattie agradeceu o prêmio e afirmou sua esperança de “sempre honrar sua raça e a indústria cinematográfica“. Ainda sob aplausos, desceu do palco, passou pela mesa em que estavam Vivien Leigh, Clark Gable e as outras estrelas de “…E o vento levou” e cruzou mais uma vez o salão rumo à mesa escondida no fundo da sala que lhe havia conseguido o produtor David Selznick a contragosto dos donos do hotel.


Aquele foi o primeiro Oscar vencido por um negro nos Estados Unidos.


Passados 76 anos, as políticas segregacionistas raciais americanas foram abolidas pela Lei de Direitos Civis, a Academia e o país são presididos por negros. No entanto, mesmo antes de serem anunciados os vencedores, o Oscar de 2016 já causa polêmica, não pelas recorrentes escolhas duvidosas, mas pela total ausência de atores e diretores negros entre os indicados.


E pior. Filmes com temática racial – como “Straight Outta Compton” e “Creed” – receberam indicações para Melhor Roteiro Original e Melhor Ator Coadjuvante, sendo os indicados brancos em ambos os casos.


Para brasileiros, a ideia de “filmes com temática racial” pode parecer uma abstração de difícil compreensão. Não que aqui o tema não fosse pertinente, muito pelo contrário. No Brasil sempre imperou o racismo velado, escondido. O racismo do vizinho, “por que meu é que não é“. Que impõe barreiras escondidas, mas não menos intransponíveis, e que sufoca expressões culturais raciais sob o mito da harmonia das três raças.


Mas voltemos ao Oscar.


Os míopes tentam reduzir a controvérsia ao casuísmo. Possíveis omissões nada mais seriam do que exemplo das corriqueiras injustiças da Academia. Para eles, a reação combativa de Spike Lee não passa de oportunismo. O boicote de Will Smith, puro “mimimi” de candidato preterido.


Mas se confrontado com as perspectivas histórica e contextual das críticas que marcam a premiação este ano, até o mais iludido com as teorias de fim do racismo ficaria constrangido.


Em 87 anos do mais importante prêmio da indústria do entretenimento, das 3.072 estatuetas distribuídas, apenas 30 (!) foram entregues a negras e negros. Um por cento! Se desprezássemos o papel central do negro na cultura americana (aliás como na nossa) e considerássemos apenas os números de sua representatividade naquela sociedade, esse percentual teria de ser pelo menos dez vezes maior.


Mas qual seria a razão para a falta de representatividade de negros no Oscar 2016 especificamente?


Não há resposta fácil para essa pergunta. E desde logo rechaço o simplismo do racismo vocal e raivoso de parcela da população americana.
Há que se lembrar que os votantes no Oscar são representantes da afluente elite liberal norte-americana. Ainda assim, 77% dos votantes são homens e 94% brancos. É aí que sugiro que se busque a resposta para a questão. Uma aparente contradição entre o pensamento liberal e progressista (portanto supostamente não racista, ou menos racista) e a formação clara de elite tradicional masculina e branca.


Nessa classe, o racismo tende a assumir uma forma diferente de expressão. Muito mais turva, de difícil detecção e constatação… um racismo mais à la brasileira, desses que se escondem por trás de normas que impõem uma aparência de igualdade espezinhada no dia-a-dia pelo personalismo e pelo preconceito velado.


Os votantes da Academia podem não representar bem o conjunto da sociedade americana, mas constituem uma boa amostra de sua elite. Para eles, a questão racial é um tema a mais. Pelo incômodo que causa, prefere-se pagar o tributo à relevância a cada cinco ou dez anos por meio da exaltação de casos edificantes (como em “12 anos de escravidão”), reconhecer sua existência e expiar a culpa coletiva num descarrego trajado em Armanis.


Varrido o problema pra debaixo do tapete vermelho, é hora de virar a página e buscar a próxima tragédia ou narrativa emotiva.
O problema é que essa não é uma opção pra quem é vítima do preconceito diário. 


Diferente de atores em crise e exploradores que dormem em carcaças de cavalos, a realidade da diferença racial persiste, incomoda, cega. O vergonhoso percentual de 1% de estatuetas vencidas por negras e negros não é cria da Academia. Como em muitas outras atividades profissionais, especialmente as mais bem pagas. Ela nasce numa estrutura social desigual; é alimentada por “audições” que reservam a negros, desde os tempos de Hattie McDaniel, papeis menores ou servis; ganha corpo nos padrões estéticos culturalmente; e apenas culmina numa lista de atores, produtores e diretores exclusivamente brancos que surge como algo natural…


E assim se constrói a quimera da meritocracia…


Essa situação é ainda mais grave num ano marcado pelas mortes de Freddie Gray, Tamir Rice, Michael Brown, Eric Garner e tantos outros jovens negros vítimas da violência policial na principal economia e mais antiga democracia do planeta. Diante desses fatos, como dizer que um filme como “Straight Outta Compton” não é relevante? Ainda que se imponha uma análise puramente artística e cinematográfica (se é que é possível ou mesmo desejável), pode-se mesmo dizer que o filme que retrata a conturbada história do NWA é mesmo tão inferior aos insossos “O Quarto de Jack“, “Brooklyn” e “Ponte dos Espiões“?


Não está convencido?


Então te convido a um exercício de empatia. Assista a vídeos sobre os assassinatos recentes como os que aconteceram em Fergusson. Tente imaginar-se na situação de familiares e amigos das vítimas.


Depois assista a “Straight Outta Compton” ou “Creed“, e tente imaginar-se envolvido na produção de um desses filmes, dirigidos e interpretados. Reflita sobre como Hollywood tem o poder de definir temas da cultura americana e mundial e como uma indicação poderia, além de reconhecer a excelência cinematográfica de sua obra, ajudar a dar atenção a um contexto social real e perverso.


Ainda não está convencido?


Bom, talvez devesse ter sugerido para imaginar-se negro desde o começo. Por que quem é nem precisou ler até aqui.