A quantidade de obras e dados para consumir hoje é altíssima. Como você decide o que assistir ou ler? Isso está relacionado com a demanda tão grande por produtividade da sociedade atual.

Já aconteceu de você entrar em uma biblioteca ou livraria e bateu uma ansiedade de que você nunca iria conseguir ler todos aqueles livros? Ou ficou muito tempo só navegando pelo catálogo da Netflix sem saber qual série, dentro de uma infinidade de opções, vai ser o foco dos seus próximos meses?

Graças à internet, a quantidade de conteúdo disponível para o cidadão médio nunca foi tão abundante na história da humanidade. Segundo a Forbes, só em 2018, 2,5 quintilhões de dados foram criados por dia, o que seria 25 seguidos de 17 zeros. Um minuto de 2017 era o suficiente para que quase 70.000 horas de vídeos fossem assistidos na Netflix, segundo levantamento do “Data Never Sleeps” (vide imagem abaixo). Certamente vivemos a era dos dados e da abundância de informações.

Dados e informações gerados por minuto em 2017 (Fonte: “Data Never Sleeps 5.0”)

Com tanta informação disponível, como você decide o que consumir? Se antes ficávamos horas passando por entre os canais de TV a cabo, à mercê que algum deles estivesse passando algo que te interessasse, hoje temos uma imensidão de possibilidades ao nosso alcance, e com possibilidade de escolha. E ainda assim, a gente se pega fazendo exatamente a mesma coisa: passando horas só olhando o catálogo da Netflix sem saber o que assistir.

Esta infinidade de possibilidades gera uma ansiedade ao se pensar que nunca seremos capazes de consumir tudo, uma lembrança até mesmo da finitude da vida. Queremos viver para sempre para poder ler todos os livros, assistir todas as séries e todos os filmes, aprender todas as línguas e por aí vai. Para lidar com esse anseio, ao lembrar dessa finitude, nos blindamos com o hábito de buscar as obras que seriam as melhores: “já que não posso consumir tudo, que pelo menos eu consuma o que há de melhor”.

Portanto, estamos sempre em busca de otimizar até mesmo o nosso tempo livre e obter a obra de maior “custo benefício”. Qual filme é a obra-prima que as pessoas estão falando bem? Qual livro vai me trazer o maior número de insights sobre a vida? Qual é a série mais aclamada pela crítica no momento? Um pensamento que veio da necessidade de ser produtivo nos estudos ou no trabalho, se expande agora para os hobbies em busca de não perder tempo.

Segundo o autor Byung-chul Han, autor de “Sociedade do cansaço”, trocamos a sociedade disciplinar dos século XX, um sistema social baseado em vigilância e punição, por uma sociedade do desempenho, em que a produtividade individual é soberana e o próprio indivíduo é responsável por se autorregular. Isso geraria um efeito colateral extremamente nocivo para o indivíduo, uma vez que a constante necessidade de afirmação e produtividade, o torna exausto, tanto fisicamente como mentalmente, desencadeando problemas como ansiedade e depressão. Doenças mentais estas que inclusive são consideradas o mal do século XXI.

Neste mesmo contexto, não é surpresa que os indivíduos acabem levando esse mesmo pensamento para o tempo livre, além do trabalho e dos estudos. Dessa forma, quando a pessoa que leva esse mindset (para usar um termo que é comum quando se fala desse assunto) para os hobbies, ela encara qualquer tempo como uma oportunidade de aprender, de produzir ou de gerar riqueza de alguma forma. E isso é extremamente nocivo até mesmo para a própria produtividade do indivíduo.

Vários estudos já revelaram uma correlação significativa entre trabalho excessivo (longas jornadas por semana) e doenças cardíacas e derrames. Portanto é importante que o tempo livre seja encarado como efetivamente tempo livre e não como oportunidade de gerar, necessariamente, alguma coisa produtiva, pois se for este o caso, vira trabalho. O próprio Byung-chul Han coloca o ócio criativo, como algo fundamental para a mente humana. Afinal, é com a mente que se realiza trabalho e se ela não estiver descansada e saudável, ela não vai trabalhar direito.

É claro que é sempre possível encontrar conhecimento e até mesmo gerar algum produto ou insight no tempo livre, seja lendo um livro ou assistindo um filme. Mas aqui eu coloco a necessidade de que isso aconteça como algo danoso. Ao encarar tudo como gerador de produto ou conhecimento, perde-se o momento de ócio e de liberação da mente. Tudo passa a ser trabalho.

Com isso em mente, eu considero que ao buscar o melhor conteúdo para se consumir, o indivíduo deve simplesmente escolher aquilo que se adequa mais ao seu gosto naquele momento específico. Pode ser que você esteja realmente afim de ver um documentário complexo sobre a história do Japão feudal e ganhar conhecimento com isso. Mas tem dias que você vai estar afim de simplesmente ver um filme besteirol. E está tudo bem. Reserve a necessidade de ser produtivo para o momento adequado de estudo e trabalho (e até nesse ponto tenho ressalvas) e divirta-se no tempo livre.

Outra dica que tenho pensado muito neste sentido é de não se preocupar em terminar essas obras. Não gostou de um livro no meio? Pare e vai ler outro, do contrário é mais possível que você vai perder completamente a vontade de ler qualquer coisa. Chegou na segunda temporada e a série está chata? Procure uma que te traga mais emoção. Não é necessário terminar algo, só porque começou (não quando se trata do seu tempo livre). Quem sabe parar e ficar um tempo sem ter contato te dê o respiro que precisava para voltar à obra depois de um tempo? O importante é estar de acordo com a sua vontade, naquele momento.

Referências

https://www.metropoles.com/entretenimento/quanto-tempo-levaria-para-assistir-todos-os-filmes-do-netflix

https://tecnoblog.net/260370/quantos-filmes-tem-na-netflix/

https://www.tecmundo.com.br/armazenamento/8429-cientistas-divulgam-numeros-da-quantidade-de-dados-no-mundo.htm

https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2018/05/21/how-much-data-do-we-create-every-day-the-mind-blowing-stats-everyone-should-read/#749339e960ba

https://www.domo.com/learn/data-never-sleeps-5?aid=ogsm072517_1&sf100871281=1

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/27/Por-que-vivemos-na-sociedade-do-cansa%C3%A7o-segundo-este-fil%C3%B3sofo

https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673615602951